Seleção de poemas do livro Totens: Enrique Flor
A)
um inseto boia no vinho e brandamente é trazido para cima
numa unha pintada que lhe serve de maca ganha vida fora da taça
quando esvoaça choca-se em
velas ardentes escorre de
costas numa flor que
enfeita a mesa
calcinado
B)
uma planta amolecida pende longa e alcança
o piso onde põe uns pés lilases de aves mortas
pés iguais um sobre o outro
insensíveis à música
incidental
C)
o Cruzeiro do Sul embaça
D)
vindo anunciar chuva a libélula agarra-se à ponta
de um galho fino sem folhas sugando-o sofregamente
o galho verga sob o peso de quatro folhas
transparente
E)
com bordas onduladas um vaso cheio apenas de areia escura
ao lado de outro igual cheio de
flâmulas verdes muito
agitadas
F)
um sapo recua até as pedras do muro
onde se aloja olhando a pista
de dança
G)
com as asas brilhantes mal fabricadas
o besouro cruza a sala
velocíssimo
H)
sobre uma bromélia verde e rosa gotas vermelhas
sósia balançam
I)
a taturana cuida bem dos pelos
nenhum amassado
J)
sob um tronco caído um rato move
a cabecinha então escorre lento para
fora
K)
um arbusto volumoso empana a parede e se remexe
explora-o por dentro talvez um gato um gambá
contudo salta de repente para fora dele
um pássaro de rabo longo que passeia então
sobre o telhado como um gato um
gambá
– Outras cenas do matrimônio
“a chuva é material maleável! o vento é material maleável!” ouviu-se em meio ao tumulto da temperatura a voz rouca e eufórica do senhor Enrique Flor “já reproduzi com exatidão uma tormenta!”
no meio da pista de dança uma folha marrom se descola como um ponteiro de relógio em meio a folhas verdes que estremecem e quando todas as verdes se acalmam a folha marrom ainda gira impassível
o zumbido do vento cessa completamente
os lampiões de gás se apagaram as velas fedem porém as chamas logo voltam a brilhar um corre-corre no quintal de madrinhas e criadas todas empenhadas em avivá-las ou ascendê-las de novo
L)
uma rãzinha voa afoita
as longas pernas traseiras
estendidas para trás e pousa num braço moreno
que descansa
M)
o murmúrio dos galhos plana
sobre a pista de
dança
– Duas cenas (secretas) do matrimônio
X)
caem da árvore penas cinza que se espalham numa toalha desfiada como pedaços de franja
…………………………………
também se espalham no piso nos vestidos
…………………………………
penas curvas retas hirtas duas quebradas uma torcida úmida
…………………………………
o noivo chama o gato da casa em vão todos chamam a arara albina que fugiu do aro finalmente a noiva joga para o alto o buquê
Mrs Arabella Blackwood ao lado da índia guarani que na verdade é cidadã argentina e se chama Rosa Frutos como ela mesma lhe revelou nessa noite admira o vestido longo da Sra. Canabrava Carneiro coberto de penas umas cor de cinza outras rosa então repete sonhadoramente a frase ouvida em outro matrimônio “... in the form of heron feathers…”
entre uma e outra aparição de gatos e araras flores vermelhas giram como hélices ou ofegantes e balofas são lançadas longe sobre o beco onde se aglomeram dúzias de bororos
Z)
(agora) uns bambus recostados
ao muro escuro como uma vassoura
ruídos de uma porta batendo
e outra se abrindo árdua
A)
recolhidas ao pátio molhado
aves vagam tranquilas na
penumbra
unidos com o sol seus gritos
agudos correrão e voarão
Medeiros, Sérgio. Totens. São Paulo: Editora Iluminaturas, 2012. p. 70-74.