Ecopoesia

ABCdário do matrimônio

Sérgio Medeiros

Seleção de poemas do livro Totens: Enrique Flor

 

– ABCdário do matrimônio 

 

A)

um inseto boia no vinho e brandamente é trazido para cima

numa unha pintada que lhe serve de maca ganha vida fora da taça

quando esvoaça choca-se em

velas ardentes escorre de

costas numa flor que

enfeita a mesa

calcinado

 

B)

uma planta amolecida pende longa e alcança

o piso onde põe uns pés lilases de aves mortas

pés iguais um sobre o outro

insensíveis à música 

incidental

 

C)

o Cruzeiro do Sul embaça

 

D)

vindo anunciar chuva a libélula agarra-se à ponta

de um galho fino sem folhas sugando-o sofregamente

o galho verga sob o peso de quatro folhas

transparente

 

E)

com bordas onduladas um vaso cheio apenas de areia escura

ao lado de outro igual cheio de 

flâmulas verdes muito

agitadas

 

F)

um sapo recua até as pedras do muro

onde se aloja olhando a pista

de dança

 

G)

com as asas brilhantes mal fabricadas

o besouro cruza a sala

velocíssimo

 

H)

sobre uma bromélia verde e rosa gotas vermelhas

sósia balançam

 

I)

a taturana cuida bem dos pelos

nenhum amassado

 

J)

sob um tronco caído um rato move

a cabecinha então escorre lento para

fora

 

K)

um arbusto volumoso empana a parede e se remexe

explora-o por dentro talvez um gato um gambá

contudo salta de repente para fora dele

um pássaro de rabo longo que passeia então

sobre o telhado como um gato um

gambá

 

– Outras cenas do matrimônio

 

“a chuva é material maleável! o vento é material maleável!” ouviu-se em meio ao tumulto da temperatura a voz rouca e eufórica do senhor Enrique Flor “já reproduzi com exatidão uma tormenta!”

 

no meio da pista de dança uma folha marrom se descola como um ponteiro de relógio em meio a folhas verdes que estremecem e quando todas as verdes se acalmam a folha marrom ainda gira impassível

 

o zumbido do vento cessa completamente

 

os lampiões de gás se apagaram as velas fedem porém as chamas logo voltam a brilhar um corre-corre no quintal de madrinhas e criadas todas empenhadas em avivá-las ou ascendê-las de novo

 

L)

uma rãzinha voa afoita

as longas pernas traseiras 

estendidas para trás e pousa num braço moreno

que descansa

 

M)

o murmúrio dos galhos plana

sobre a pista de

dança

 

– Duas cenas (secretas) do matrimônio

 

X)

caem da árvore penas cinza que se espalham numa toalha desfiada como pedaços de franja

…………………………………

também se espalham no piso nos vestidos

…………………………………

penas curvas retas hirtas duas quebradas uma torcida úmida

…………………………………

o noivo chama o gato da casa em vão todos chamam a arara albina que fugiu do aro finalmente a noiva joga para o alto o buquê

 

  1. Y) 

Mrs Arabella Blackwood ao lado da índia guarani que na verdade é cidadã argentina e se chama Rosa Frutos como ela mesma lhe revelou nessa noite admira o vestido longo da Sra. Canabrava Carneiro coberto de penas umas cor de cinza outras rosa então repete sonhadoramente a frase ouvida em outro matrimônio “... in the form of heron feathers…”

 

entre uma e outra aparição de gatos e araras flores vermelhas giram como hélices ou ofegantes e balofas são lançadas longe sobre o beco onde se aglomeram dúzias de bororos

 

– Cenas (finais) do matrimônio

 

Z)

(agora) uns bambus recostados

ao muro escuro como uma vassoura

ruídos de uma porta batendo

e outra se abrindo árdua

 

A)

recolhidas ao pátio molhado

aves vagam tranquilas na

penumbra

 

unidos com o sol seus gritos

agudos correrão e voarão

 

Medeiros, Sérgio. Totens. São Paulo: Editora Iluminaturas, 2012. p. 70-74.




Comment Box is loading comments...